terça-feira, 16 de junho de 2009

contos sublimes

Por Miguel Real - Jornal de Letras

Chovem Cabelos na Fotografia, primeiro conjunto de contos de Maria Antonieta Preto, foi recebido em 2004 com a sensação triunfante de que o Alentejo do século XXI, pós-Reforma Agrária, tinha encontrado um novo escritor. Para trás, na história da literatura, ficavam, entre nomes menores, Manuel da Fonseca, Urbano Tavares Rodrigues e, sem dúvida, o romance auroral de José Saramago, Levantados do Chão. Já sem ideologia enformadora, mas também sem casticismo estrénuo, Chovem Cabelos na Fotografia retratava o Alentejo profundo, mítico e antropológico, cruzando lendas mouras com situações existenciais de cavada miséria e solidão.
Muito recentemente, Maria Antonieta Preto voltou às livrarias, publicando A Ressurreição da Água, compilação de quinze contos, onde emerge de novo o Baixo Alentejo como tema maior. Porém, como Jorge Listopad assinalou na apresentação do livro, existe em A Ressurreição da Água a novidade de uma “desrealização” da realidade, isto é, se o primeiro conjunto de contos apontava directa e esteticamente para o universo semântico e mítico do Alentejo, este novo livro, não deixando de o fazer, universaliza igualmente as narrativas, apontando para um antigo complexo geográfico-cultural mediterrânico, decididamente oposto ao actual complexo cultural racional e tecnocrático europeu. Neste sentido, Maria Antonieta Preto venceu a tentação de permanecer uma escritora “regionalista” –, sinal forte e conseguido do seu primeiro livro - para se estatuir como escritora, apenas e só, cujo ponto vivencial de inspiração reside no Alentejo, daqui partindo para narrar histórias universais. O mesmo itinerário estético fora já seguido por António Manuel Venda relativamente ao interior algarvio e por José Luís Peixoto relativamente ao Alto Alentejo.
A segunda novidade de A Ressurreição da Água reside na narrativa de título homónimo. É, porventura, o melhor conto escrito por um escritor português neste século. Tudo nele é perfeito, o estilo – lírico -, compensando o real desespero psicológico da ausência de chuva, do vazio da existência da gente daquele monte, Esquecidos de Cima, e do seu futuro desabitado e sem sentido; o flashback de Tâmara como processo narrativo; o classicismo temporal da história, com princípio, meio e fim; o final feliz após tempos infelizes; a amplitude do vocabulário, arcaico e vernacular, harmónico com a situação e o espaço descritos; a relação de casamento ontológico entre homem e animal (cão, perdizes, ovelhas…); a descrição das características individuais prolongando o retrato do colectivo, todos unidos num só destino, como os dedos de uma mão; a delineação contida, sem dramatismo hiperbólico ou entusiasmo romântico, do desespero social do povoado; o sentimento de angústia geral, que atrai homens e mulheres para a reza das novenas a Nossa Senhora da Guadalupe; o processo estilístico de reiteração (“perdemos…”, pp. 145/6), dando conta do desânimo de homens e mulheres; a descrição da anormalidade social motivada pela falta de chuva, que desorienta as mulheres (“esquecíamo-nos…”, pp. 146/7). É, na tragédia narrada, um conto feliz, o melhor conto do livro e – repetimos – porventura o melhor conto publicado em português (de Portugal) neste século.
Com efeito, Maria Antonieta Preto descreve neste seu livro um mundo rural arcaico (mas subsistente), totalmente diferente daquele que o homem tem civilizacionalmente construído desde meados do passado século. Por isso, os nomes das personagens de todos os contos (Antonásio, Pertólio, Liortina, Azenia, Rizá…) reenviam para um universo cultural onde “os vivos não morriam” (“Antigamente os vivos não morriam”); o mundo das mulheres-parteiras (“O mar de palhadaço”); o mundo da mulher sem vontade, submetida imperiosamente ao macho (“O braço atrás das costas”), seu proprietário absoluto (“Humilhação”); mundo mítico e mágico onde não existia separação entre vivos e mortos (“Aniéfora e os anjos”), mundo, não de quantidades técnicas, como o nosso, mas de sensações qualitativas, onde a qualidade mais destacada dá o nome ao todo (“traziam a língua nas partes do corpo descobertas”, p. 79; “tiro papéis de sangue”, p. 73).
Os contos de Maria Antonieta Preto subvertem a imensa mecânica de hábitos por que ritmamos a nossa vida, despertando-nos para uma outra dimensão da existência, uma dimensão fantástica, ainda existente nos subterrâneos de Portugal, como tão belamente o evidencia o primeiro conto. Em conjunto, os dois livros de contos da autora resgatam para a História um Portugal que se está esfumando, asfixiado e desaparecido sob a avalancha de costumes europeus. É igualmente função da literatura, da Grande Literatura, tornar o passado presente, não apenas no presente de hoje e de aqui, mas, em forma de cultura, num presente contínuo, eterno, para que os homens do futuro saibam, com fidelidade, de quantas realidades a realidade foi feita.

1 comentário:

  1. Parabéns pelo teu blogue, que é um espaço de justiça e admiração pelo teu belo trabalho de escritora. Muito ainda há por escrever sobre esse fantástico mundo ficcional que tão bem crias.

    Eduardo B. Pinto

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